A Licenciatura Intercultural Indígena Kuaba se efetivou na Universidade Federal do Ceará em 2017 através de uma proposta de formação de índios cearenses a partir da qual um híbrido de saberes tradicionais pôde ser amalgamado a conhecimentos científicos e acadêmicos pertinentes à formação do egresso. Com efeito, organizou-se coletivamente, com a participação de indígenas e docentes da UFC, um Projeto Pedagógico de Curso que intentava promover formação epistêmica, teórica, cultural e factualmente diversa. Dentre os componentes curriculares presentes no PPC dessa graduação, que realizam essa conjunção matizada dos atos de ensinar, aprender e praticar a docência, estão os Estágios Curriculares Supervisionados.
A presente obra, intitulada Oficinas Pedagógicas Interdisciplinares, é organizada pelas professoras Ana Célia Clementino Moura, Dannytza Serra Gomes, Mônica de Souza Serafim e pelo docente Antônio Duarte Fernandes Távora, com autorias de discentes indígenas pertencentes a 10 etnias do estado do Ceará (Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kanindé, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tapeba, Tapuia-Kariri, Tremembé), e concebe cenários e perspectivas multiculturais, factuais, científicas e acadêmicas sobre oficinas pedagógicas a serem implementadas pelos egressos do Kuaba enquanto profissionais docentes.
A associação de proposições, reflexões e metodologias a serem utilizadas para melhor identificar, compreender, analisar e, quando possível, orientar ou imiscuir transformações em realidades socioculturais indígenas, evidencia escopos pertinentes e refina a formação dos licenciandos dessa graduação. Nesse termo, a “hibridação”, pensada por Canclini (2003), ou seja, a mistura entre o antigo e o novo, entre o tradicional e o moderno, entre racionalidades, técnicas, fatos, instituições, escolas, perspectivas, saberes, conhecimentos, rituais etc. revela-se nas oficinas pedagógicas sublinhadas como estruturas heterodoxas qualificadas para abordagens, simultaneamente, plásticas e profundas dos eventos pautados para análise. Nesse sentido, acontecimentos como a pandemia do Covid-19, o patrimônio cultural, o alcoolismo nas aldeias indígenas, as pinturas corporais, o ritual do Toré, os lugares da vivência, a educação ambiental, a diversidade de gênero, entre outros tantos temas pensados coletivamente pelos discentes indígenas e os destacados docentes organizadores desta obra, assumem a qualidade do que Thompson (1995) denominou de “formas simbólicas” e enunciam dadas intenções, referenciais com a realidade, significados estruturais e contextos sociais plurais determinados.
Os processos educativos que enlaçam as propostas dessas oficinas apresentam, outrossim, possibilidades didáticas e metodológicas que intentam se acomodar às realidades socioculturais pautadas para reflexão. Desse modo, a obra propõe o desenvolvimento de textos e hipertextos, comparações de informações, realização de entrevistas, organização de biografias, procedimentos de leituras,
captura e edição de áudio e vídeo, descrição de romances, contos e fábulas, identificação das variedades linguísticas etc., sempre amparados em conhecimentos acadêmicos e científicos que circunscrevem às áreas da ciência, língua portuguesa, matemática, geografia, história, literatura indígena, artes entre tantas outras possíveis.
Nesses termos, as oficinas pedagógicas adiante apresentadas renovam e aprofundam a perspectiva a partir da qual a universidade e a educação por ela proposta não podem e nem devem ser afastadas das realidades socioculturais de indígenas (e de discentes não índios também), observando e considerando aquilo que Paulo Freire (2017) denominou de “tempo pedagógico”, isto é, o momento ímpar, realista, situacional e contextual dentro do qual a informação e a compreensão são paulatinamente apreendidas e exercitadas, respectivamente, em diálogo contínuo com a criticidade.
Em um tempo histórico no qual a transmissão da informação é ultrarrápida, em virtude do incremento tecnológico dos meios de comunicação e do acesso cada vez mais democrático a tais veículos, as oficinas pautadas se nutrem de algo que é essencial para a reflexão e análise, mas que, lamentavelmente, no senso cotidiano e não especializado se revela em desuso: a fundamentação na realidade. Com efeito, recolhendo por empréstimo a análise de Cortella (2014), as/os professoras/es e os indígenas, organizadores e autores desta obra, expressam muita coragem e resiliência pedagógica por compreenderem que a presença da dinâmica social e sua pluralidade de fatos e sentidos não devem ser subtraídos, negados ou dissimulados em favor de opiniões desregradas e alienadas das sociabilidades construídas pelos indígenas do Ceará.
Esta obra, portanto, é de fundamental importância para formação do egresso do Kuaba, como também colabora, notavelmente, com as dinâmicas educacionais das escolas indígenas, pois se propõe atenta aos diálogos permanentes entre os sabres tradicionais dos povos originais do Ceará, os conhecimentos acadêmicos e científicos produzidos por docentes da UFC e de outras IES e, especialmente, com as realidades socioculturais dos índios.
Sejam vocês muito bem-vindos a essa formidável experiência educacional, profissional e humana.
Fortaleza, março de 2021.
Carlos Kleber Saraiva de Sousa
Professor do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará.
Coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena KUABA.
Antônio Duarte Fernandes Távora
Professor do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
Vice-coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena KUABA